Foi em meio a risadas de uma mãe em pleno trabalho de parto que veio ao mundo aquele que, para muitos, é o maior dos poetas do rock brasileiro. De tão inusitado, o caso chegou a ser analisado por um comitê de médicos, conforme lembra a própria mãe. “Ninguém acredita, mas eu dei a luz dando risadas, enquanto me dava conta de que o parto seria bem mais fácil do que dizia uma guria que fez curso de pré-natal comigo”, lembra Carmen Manfredini, dona Carminha – a mãe que trouxe ao mundo o pequeno Júnior, mais conhecido como Renato Russo.
Renato Manfredini Júnior morreu há exatos 25 anos, completados neste 11 de outubro. Sua obra, no entanto, continua viva e atemporal para aqueles que tanto se identificam com suas letras e reflexões sobre a “tchurma”, termo que ele costumava usar para o grupo de amigos com quem conviveu a adolescência e a juventude; sobre as cidades onde viveu, em especial, a musa Brasília dos anos 70 e 80; sobre o Brasil; e sobre os sentimentos que fazem, de cada um de nós, humanos.
Parte das lembranças e memórias deixadas por Junior a sua família e pelo Renato “Manfredo” aos amigos foram contadas com exclusividade à Agência Brasil por familiares, amigos, músicos e profissionais que tiveram o privilégio de conhecer, de perto, a pessoa, o artista e a obra de Renato Russo, líder da Legião Urbana.
Júnior “Foi uma gravidez e um parto tranquilíssimos, apesar da minha inexperiência. Não tinha a menor ideia de nada sobre isso, motivo pelo qual fiz um curso de pré-natal. E me assustava quando diziam que eu sentiria muita dor e que seria necessário fazer muita força para o bebê nascer. No entanto, bastaram três ou quatro contrações para ele pular fora. Em meio às contrações, eu não parava de rir ao lembrar disso. Foi uma sensação muito boa”, conta dona Carminha ao recordar o marcante 27 de março de 1960.
A mãe do poeta que acabara de nascer diz que seu filho sempre foi “um menino fora de série”, que “não criava caso com nada”, a ponto de sequer precisar de babás ou empregadas. “Era um menino exemplar, excepcional no colégio, alegre, comunicativo e brincalhão, principalmente com os primos e com a irmã”, acrescenta. “E assim foi até entrar no bendito rock”, complementa em tom de brincadeira, uma vez que, até o final da vida, Renato continuava sendo, para a mãe, “o rapaz doce que sempre foi”.
O gosto pela música já se manifestava quando ele tinha seis ou sete meses de idade, ainda dentro do berço onde, entre os brinquedos, havia um pequeno rádio de pilha tocando “as músicas brasileiras de ótima qualidade da Rádio Tupi”.
“Um dia, me deparei com ele em pé, pulando e segurando na grade do berço. Eu fiquei preocupada, mas a cara dele era alegre. Descobri que era por causa da música porque, quando eu tirava o rádio da cama, ele chiava. O rádio foi a melhor babá que podia existir para meu filho”, recorda dona Carminha.
Livros e discos foram objetos muito presentes na vida do Júnior. “O pai [Renato Manfredini] também era intelectual. Aos domingos, ficávamos todos em uma saleta, cada um com um livro na mão. Escutávamos músicas clássicas e músicas americanas que estavam na moda, em uma vitrola baixa daquelas com pé palito”.
Um dia, os Manfredini foram surpreendidos ao verem o Júnior, aos 2 anos, tirando um disco da vitrola e, com todo cuidado, colocando-o certinho na capa correspondente.
“Não tinha nada na capa. Só nome de artista. Em seguida, ele pegou outro disco e o colocou na vitrola. Ficamos muito impressionados porque ele era muito pequenino para fazer aquilo. Dali em diante, sempre que queria ouvir música ele ia lá colocava o que queria. E sempre guardando na capa certa”, detalha dona Carminha.
“Nunca contei isso a ninguém da família porque achava chato esse negócio de historinha bonitinha de filho”, acrescentou.
“Opípero” Aos 5 anos, o pequeno Renato escreveu seu primeiro livro. “Um livrinho com ilustração e índice. Era a história de um príncipe que tinha ido no castelo para um jantar ‘opípero’. Eu me surpreendi porque não conhecia essa palavra. O pai então me explicou que era um ‘jantar grandioso, com muita comida’. Aprendi essa palavra com meu filho”.
Uma outra pessoa que aprendeu muita coisa com o Júnior foi a irmã, Carmen Teresa. “A coisa mais marcante que tenho do meu irmão é o fato de ele gostar de me explicar as coisas. Principalmente a parte cultural: literatura, música, arte, teatro, cinema. Aprendi quase tudo com ele. E também as preocupações que ele tinha com relação à carreira que eu iria escolher. Aquela história do ‘o que você vai ser quando você crescer?’. Ele era muito atento ao que me interessava”, lembra Carmen Teresa que, hoje, é professora de inglês e cantora.
As primeiras lembranças que tem do irmão são de cuidados, proteções e as manifestações de afeto e carinho tanto com ela quanto com a mãe. “Mas ele sempre foi muito generoso com todas as pessoas. Tinha uma empatia fora do comum. Era uma pessoa boa, honesta e muito espiritualizada. Ouvia e seguia a própria consciência como ninguém. Inclusive com relação à música. Ele jamais faria música por dinheiro”.
Ainda é cedo, Mônica! Essa personalidade “doce” se manifestava também na vida amorosa, principalmente com as namoradas. “Sim, ele namorou muito com mulheres, e sempre de uma forma muito respeitosa”, diz a irmã. Segundo Carmen Teresa, Renato tinha uma predileção por mulheres de personalidade forte, a exemplo da personagem Mônica, da música Eduardo e Mônica, e da personagem cantada na música Ainda é Cedo.
"Uma menina me ensinou
Quase tudo que eu sei
Era quase escravidão
Mas ela me tratava como um rei."
Trecho de Ainda é cedo, da Legião Urbana
“Ele não se sentia atraído por mulheres submissas ou dependentes, e isso também pode ser percebido na música Submissa, dos tempos de Aborto Elétrico, quando ele usa a palavra ‘submissa’ até em tom depreciativo. As amigas e namoradas dele, em geral, eram mais velhas e inteligentes, já com personalidade e carreira própria”.
Na opinião da irmã, Renato gostava de se relacionar tanto com homens quanto com mulheres. “Meu irmão era, na verdade, bissexual. Essa impressão foi inclusive corroborada pelo psiquiatra dele, de que o Renato queria, até do ponto de vista artístico, levantar a bandeira em favor da liberdade de as pessoas serem o que quiserem ser”.
O Filho da Revolução O livro Renato Russo – O Filho da Revolução entrelaça, segundo o próprio autor, a história do Renato, em Brasília, com a história da cidade e do país. “Como me disse um amigo, a biografia contrabandeia um livro de história porque conta muito sobre a história recente do país. Queria mostrar o crescimento de um jovem brasileiro durante a ditadura militar, e como ele foi influenciado por essa vivência em uma cidade adolescente, sendo que o Renato também era um adolescente. É muito raro ter uma geração de adolescentes tomando conta de uma cidade que também é adolescente”, argumenta.
Esses adolescentes citados por Carlos Marcelo foram também abordados no livro O Diário da Turma, de Paulo Marchetti. O livro apresenta depoimentos de diversos integrantes da cena que tinha, ao centro, o Renato, ainda nos tempos de Manfredo.
Como era também integrante da “tchurma”, Marchetti conviveu com Renato. “Ele sempre falava que um dia a Legião ia terminar, e que ele ia virar escritor. Dizia inclusive que o primeiro livro que ele gostaria de escrever seria sobre a ‘tchurma’, para contar histórias de Brasília”, lembra o escritor que é também diretor de TV.
“Quando o Renato morreu, liguei para alguns integrantes da turma, como o Dinho [vocalista do Capital Inicial], o Bonfá e o André Muller [baixista da Plebe Rude]. Ninguém estava pensando em escrever. Então resolvi escrever, após passar por uma síndrome de pânico que me fez pegar essa missão. Eu achava que o Brasil devia conhecer a história que vai além das bandas famosas”, detalha.
René Sampaio não conheceu pessoalmente Renato Russo. Mas se sente íntimo das obras do artista. “Renato Russo mudou minha vida várias vezes. Quando era moleque, escutando suas músicas, via em cada disco uma mensagem e uma reflexão diferente. Depois, já adulto, fazendo filmes sobre suas músicas. Ele me influenciou pessoalmente e influenciou, também, minha carreira. Mudou o meu rumo para uma grande virada”, diz o diretor de cinema.
Registros fotográficos Outro que teve a carreira impulsionada pela cena e, em especial, por Renato Russo, foi o fotógrafo Ricardo Junqueira, ou “Bolinha”, como era conhecido na época.
“Após as fotos que fiz para divulgação do primeiro disco da Legião, vi que poderia ganhar dinheiro vivendo de fotografia. No dia seguinte pedi demissão do banco onde trabalhava, porque o que ganhei naquele trabalho era equivalente ao que ganharia em um mês de banco. Só tenho a agradecer à banda, à Fernanda [Vila-Lobos, produtora do primeiro disco] e ao Renato, que me proporcionaram isso”.
Ricardo Junqueira assina, ao lado do também fotógrafo Nick Elmoor, o livro Pós-New Brasília 1981-1989, a Biografia Fotográfica de um Tempo que Não Foi Perdido. Trata-se do maior registro fotográfico já feito das principais bandas brasilienses da época, em especial da Legião Urbana, uma vez que, além de fazer imagens para álbuns, Junqueira foi encarregado de registrar algumas das turnês da banda.
“O fato de estudar publicidade me aproximou do Renato, quando estudava jornalismo. Era bom conversar com ele, que tinha posições muito fortes. Era muito frontal com muita gente. Nunca foi uma pessoa muito simpática ou muito tranquila. Às vezes era até agressivo com algumas pessoas que tinham opinião muito diferente da dele”, lembra o fotógrafo que desde 2012 trabalha em Lisboa.
25 anos sem Renato As lembranças que Junior (ou Manfredo, para os amigos) deixou àqueles com quem conviveu e o legado artístico de Renato Russo acabam por gerar uma sensação de “equilíbrio distante”, como dizia o artista, e de perda de noção de um tempo que, de fato, não foi perdido.
Após um quarto de século de sua morte, ele continua presente e “vivo” por meio de sua obra. Renato Russo deixa um legado que possibilitará, a várias outras gerações, entender parte do que foi este “nosso próprio tempo”.